No início era a ideia. Não sabia
muito bem como fazer. Havia criado um universo, suas leis e mistérios, como um
engenheiro criando um parque de diversões. Lembrou de tudo. O tempo, o espaço,
a matéria, a gravidade e a sua mais brilhante invenção: a luz. Trabalhou diante
de cálculos por vasto tempo. Traçou rotas, definiu velocidades, acelerações,
multi relações Inter causais que geravam conflitos a tudo que ele próprio havia
criado. Construiu o feixe de luz em uma velocidade constante, com fartas
propriedades, mas que quando esbarrava na matéria, abundante no universo,
tendia a desacelerar e refletir para a sua origem, obstruindo então o fluxo da
informação. Como podia transmitir informação entre os processos no tecido
espaço-tempo se havia empecilhos necessariamente construídos a propósito da
criação? Aprimorou a luz que agora sofria uma desaceleração curvando-se na
borda da densa matéria e assim prosseguindo em sua missão. Quantos planetas
perdidos por calcular mal a distância de onde colocar um buraco negro.
Mesmo com tanta dificuldade,
ainda assim era fácil construir como engenheiro. Trabalhava todo tempo calado,
abstrato no centro de tanta realidade em construção. Do geral ao específico, em
cada detalhe, a cada estrela devidamente localizada, desenhando cuidadosamente
as incandescentes vias lácteas. Tudo dependia apenas de si e sua criatividade.
Finalmente, chegou o momento de sua mais desafiante criação. Preparou algumas
matérias que apresentavam boa localização para o seu intento, modelou-as para
que melhor ocupassem a área e a rota que seguiriam. Arrumou outros planetas bem
localizados formando órbitas em torno de certas estrelas. Tudo muito bem
sincronizado. Seriam naqueles laboratórios ainda disformes e incandescentes e
repletos de energia que a vida seria testada. Se antes trabalhará como físico,
engenheiro, mestre de obras e peão, agora era como um químico, misturando
elementos, medindo densidades atmosféricas, pressão, gravidade, rotação e campo
magnético. Em alguns momentos, esperou tal qual um cozinheiro, esperando que as
batatas amoleçam na panela.
O que pôr no caldeirão? Com o
resfriamento de todo processo, pôde construir um projeto, modelando o terreno,
dando o seu toque artístico, como sempre o fazia. Não bastava toda aquela obra
faraônica ser funcional, necessária... Precisava, antes de tudo, ser bela!
Estava animado e sem entender bem o porquê, agora trabalhava conversando com o
seu experimento, com sua criação, mesmo não obtendo resposta clara e diferente
do que a sua própria imaginação o respondia. Um dia, em um dos laboratórios que
ainda respondiam ao projetado, fez uma certa combinação, meio que por acaso e
obteve uma enorme explosão! Uma hecatombe de grandes proporções alterará
sensivelmente todos os avanços até ali alcançados. Toda matéria parecia reagir
de forma imprevisível, estando e não estando nos lugares programados. Os
elétrons moviam-se aleatoriamente e a gravidade reuniu as moléculas presentes
formando uma enorme tempestade. Por alguns milhares de anos ele acreditou ter
perdido aquele laboratório. Cinza e branco girando violentamente no universo.
Partiu para outros centros de pesquisa, mas não obteve sucesso que o animasse.
Um dia, em uma fria noite,
deitado na curva de uma lua pendurada em saturno, distraído com seus
pensamentos, elaborando seus fracassos, viu flash de luz vindo de algum lugar,
algo inesperado, fora das rotas previstas. O laboratório Alfa 05, o que estava
interditado, estava soltando flash de luz. Raios rasgavam o céu acinzentado do
planeta, luz criada pela própria criação, até aquele momento inexistentes
naquele universo, mas seguindo os mesmos princípios. Como pode? Que tipo de
fenômenos acontecem? Por um instante teve medo e decidiu abortar a experiência.
E se aquilo gerasse energia e destruísse toda a criação? Mas antes de uma
decisão daquele porte, decidiu investigar o que acontecia. Chegou na fronteira
de Alfa 05 e percebeu que não poderia entrar. Ele girava muito rápido, o que
distorcia o tecido espaço-tempo, criando um véu protetor. Em condições normais
bastaria seguir o protocolo e como que por um milagre, poderia com algum
esforço reverter aquela situação. Entretanto aquela era a única coisa existente
no universo que estava fora do seu controle.
Construiu então um grande cometa.
Calculou a rota por um buraco de minhoca de tal distância que o projétil
pegaria impulso por um ângulo em curva descendente, ganharia aceleração em uma
razão exponencial, rompendo assim a atmosfera hostil de Alfa 05. As ondas e o
impacto, pelos seus cálculos, atritariam em sentido oposto à rotação, desacelerando
assim o furioso planeta. Finalmente, uma manobra que gerou sucesso. Com isso,
entrou no laboratório e percebeu que muito havia se modificado, porém haviam
mares em sua superfície, uma sopa de muitos elementos. O céu era uma verdadeira
tormenta, cuspindo raios que varriam as montanhas que se formaram e os mares
que moviam-se agitados. Decidiu, então, examinar com mais precisão todo aquele
caldo que precipitava naquele céu raivoso. Na poça de toda aquela lágrima pôde
notar algo em acontecimento. Ao que parece, toda aquela mistura em reação,
alimentadas pela energia daqueles raios gerados pelo magnetismo pulsante de
Alfa 05 havia gerado uma partícula e uma onda energética que se reuniam numa
única substância que, diferente de toda criação que foi possível até agora,
percebia e alterava sua própria rota.
Ficou fascinado por um instante e
aterrorizado em outro. Como que por um salto, teve um insight: Seria aquele o
princípio da vida? Se sim, como descobriria a fórmula, já que foram justamente
as consequências das suas ações e não os seus planejamentos que, no fim,
determinaram os rumos do processo de criação em desenvolvimento? Na verdade,
não importava. Há tempos não encontrava um algo tão interessante para se
debruçar. Um movimento que, apesar de previsível, era totalmente inesperado.
Não sabia como proceder as pesquisas, pois nada daquilo que até agora estava
construindo e estudando ajudava a compreender aquele fenômeno emergente.
Refletiu por algum tempo e decidiu então não controlar a situação e não
explicar as relações. Não controlava as variáveis além do que a sua própria
presença já controlava. Decidiu apenas observar e descrever. Queria entender
por que aqueles seres decidiam as suas rotas, para que se moviam, e como faziam
isso. Percebia que quando dois corpos daquela qualidade estavam próximos a se
encontrar, o choque ou o desvio não estavam previstos, apenas poderia traçar as
múltiplas probabilidades.
Um dia notou um fato inédito.
Dois seres muito atraídos, em rota provável de colisão, não se chocaram, mas
tão pouco se desviaram. Os corpos se fundiram. Matéria dentro da matéria. Uma
troca intensa de energia. A troco de que se perderiam? Indagou ele maravilhado
com a cena. Após o encontro se separaram, mas agora não eram apenas dois, eram
três. E por uma lógica que não conseguia entender, aquele estranho
comportamento que antes não percebera em suas observações, agora acontecia a
maioria dos seres. Assim, percebeu um fluxo de transformação. A cada reflexão,
os seres estavam mais diferentes, múltiplos, dotados de diferentes formas e
funções. Seus contatos com tudo aquilo que aparentemente excedia as fronteiras
do seu campo magnético de constituição era mediado hora por decisões, hora não.
Ralavam-se mutuamente nos bordos da própria existência, esgueirando-se nas curvas
da sobrevivência, modelados por um ambiente hostil e cuidadoso.
Rapidamente ele notou que não
poderia dar conta de todos aqueles fatos, que aceleravam e desaceleravam as
suas transformações dependendo do tipo de inter-relações que se estabeleciam. O
que sabia até então tornara-se obsoleto em questão de segundos e altamente
necessário horas mais tarde. Há tempos não preocupava-se em arrumar o universo,
ajustar as rotas, limpar os buracos negros. Vivia imerso naquele laboratório,
intrigado com toda aquela minúscula experiência em plena atividade. Aquilo foi
tomando o planeta que agora possuía uma atmosfera limpa e transparente, uma
atividade própria, uma dinâmica de existência conscienciosamente intencionada.
Não queria explicar, mas estas flutuavam entre as linhas das suas descrições
como ciclos intermináveis de auto gestação. Decidiu sentar na lua para ter uma
visão mais geral do movimento. Via que agora eram seres muito variados, movidos
por uniões e separações, amor e ódio. Cuidavam-se ao ponto que devoravam-se
como numa dança explosiva onde as tensões dos corpos geram movimentos únicos e
coordenados.
Após o fim da tempestade e alguns
períodos seguintes, via-a do alto como uma pequena esfera, geoide, que brilhava
do azul ao verde que propagava-se a todo canto do universo. Mas como um
detalhista, ele não se deixava admirar pelos mares e rios formados, mas pelas
rochas e montanhas, o opaco marrom que pairava no cenário de certa época o fez
rebatizar aquele laboratório de Terra. Sua bruta esmeralda espacial encrustada.
Era naquele solo que sua atenção se dirigia, apesar de muitas coisas
acontecerem nas águas. Um dia, percebeu grupos de seres que pareciam partilhar
algumas das suas próprias características. Seres que criavam. Começaram muito
oprimidos. Sobrevivendo em suas minúsculas e insignificantes existências, mas
pareciam construir algo que os outros seres não pareciam possuir. Sabiam-se de
si naquele experimento. Previam acontecimentos e traçavam rotas. Como pode uma
criação recriar o criador?
Então, observando um grupo desses
seres interessantes, notou um conflito em que as criações de certo ser,
voltaram-se contra o seu criador, numa declarada ânsia pelos poderes e
privilégios daquele que os criara. Pôs-se a pensar em como podia o criador não
ter ciência do que conterá na criação, uma vez que foi dele que se concebeu a
criação. Apenas uma explicação lhe ocorria na sua reflexão, a hipótese do
criador não se conhecer tão bem a ponto de projetar uma criação da qual não
tenha controle, depositando nesta a parte daquilo que não conhece sobre si.
Afinal, partia do princípio da imagem e semelhança. Foi exatamente o que
aconteceu com ele, com Alfa 05... Com a Terra.
Estava em êxtase! Uma conclusão
que lhe aproximava de um caminho, de uma busca há um tempo ignorada. Como toda
aquela história havia acontecido? Qual era o mistério da criação que a tornava
imprevisível, diferente na vontade do seu criador? Sabendo essa fórmula ele
poderia descobrir onde errou, porque acertou e como construir um processo
protocolado, sistematizado, com ciência das causas e dos efeitos. Estava a um
passo de desvendar aquele fenômeno que crescia desordenadamente. Mas por onde
começar...? Estalou os dedos subitamente. De todos os lugares do universo, este
era o mais óbvio e o mais improvável de todos. Para descobrir todo processo da
criação, ele teria que mergulhar em si mesmo, desvendando a sua própria
criação.
Mas aquilo somente apontava um
caminho e não um meio para tal. De certo, não poderia ser o objeto da sua
pesquisa e ao mesmo tempo o seu avaliador, afinal, não poderia simplesmente
confiar em si, assim como não confiava nos outros objetos do universo até
atingirem rotas constantes. Pensou numa
possibilidade tola. De alguma forma, se identificava com aqueles seres
desafiantes que, assim como ele próprio, sabiam-se de si. Cogitou por um
momento em recrutar um desses seres para que ouvisse a sua história. Iniciou os
experimentos, mas sem sucesso. A verdade é que tal contato entre criador e
criatura gerou muitos acontecimentos que envolveram toda a Terra por vasto
período. Aqueles sapiens não podiam ouvir sinceramente toda aquela história sem
enlouquecer, criar suas fantasias e achar que era deles que se estava falando.
Não era o que ele dizia, mas como entendiam esses tais seres do que ouviam.
Decidiu romper o tecido
espaço-tempo para uma contemplação longitudinal. Avançou muitos períodos e viu
civilizações serem erguidas e destruídas sucessivamente. Até que um dia...
Abriu a minha porta, entrou, deitou no divã e ficou olhando para o alto. Eu já
havia encontrado muitas atitudes bizarras nesse tempo de profissão, não seria
aquilo que me surpreenderia. Pela atitude e postura parecia saber o que buscava
ali. Disse-lhe:
- Fale o que vier a cabeça, na
ordem que desejar. Levantei e fechei a porta que ele mesmo deixara aberta.
Ele me parecia familiar. Uma estranha
sensação de que o conhecia, mas não sabia de onde. A forma como se vestia
parecia banal, mas via uma coisa no seu olhar que arrepiava a espinha. A
profundidade de como mirava o que estava a sua frente dava a impressão de que
ele não estava nesse planeta. Cerca de cinco minutos de silêncio, começou a
falar:
- Bem... Para mim, começar não é
o problema. Mudou as expressões faciais como que acordado por um lampejo. Seu
rosto passou de preocupação, com as suas sobrancelhas retorcidas revelando
ondas de rugas finamente desenhadas, para uma vergonha aparente. O sangue
apresentou-se em seu rosto e desviou o olhar de si mesmo, de seus próprios pensamentos.
Disse num rompante:
- É isso! Como não pensei nisso!?
É o começo... A origem. Como saber a origem da criação e de todo esse processo
se... Fez uma longa pausa abrindo e revelando toda eletricidade daqueles globos
oculares. -... Eu não conheço minha origem! Disse levantando-se de súbito.
Confesso que não estava entendendo muita coisa e em um momento censurei a ação
de escrever no canto de um bloco de notas: “psicose”.
Ele parecia meio perdido. Chegou
a uma conclusão sobre si em poucas palavras e estava claro que precisava tempo
para elaborar. Explorar aquilo agora, diziam minhas experiências, talvez não
produzisse muito efeito, então decidi fazer o corte. Esperei alguns minutos
para dar lugar ao silêncio. Não sabendo exatamente o porquê, decidi dizer-lhe
alguma coisa antes, algo que lhe oferecesse algum suporte – geralmente não
fazia aquilo:
- A origem... dilema de toda a
humanidade. Ele virou a cabeça para mim e apenas naquele momento pareceu que
realmente havia me percebido naquele lugar. Pensei que havia cometido um equívoco,
mas os seus olhos tomaram um ar mais sereno, deitou-se novamente e começou a
falar.
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