Viajante!

Apenas encontrará o que procura nos meus domínios caso esteja ligado com o que mais desconhece sobre si.



terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Mergulho em um Espírito Profundo

...
Tudo que é profundo aprecia o disfarce, as coisas mais
profundas têm inclusive ódio à imagem e ao símbolo. O pudor
de um deus não gostaria de pavonear-se sob a forma de seu
próprio contrário? Problema difícil. Seria estranho que não se
encontrasse algum místico que se atrevesse a agir por sua
conta. Há processos de caráter tão delicado que é conveniente
encobri-los e fazê-los irreconhecíveis através de seu pesadume,
há certas manifestações de amor e generosidade exuberante
após as quais nada há de mais aconselhável que apanhar um
bastão e surrar à testemunha ocular para turvar sua memória.
Mais de um se dedica a perturbar e a maltratar sua própria
memória, para, assim, pelo menos, vingar-se de seu único
cúmplice — o pudor é muito engenhoso. Não são as coisas
piores as que nos causam maior vergonha. Atrás de uma
máscara nada mais há que felonia. Há tanta bondade na astúcia!
Por outro lado, por delicadeza do pudor, o homem bem dotado
desse sentimento encontra seu próprio destino e suas decisões
mais delicadas em caminhos pouco freqüentados pelos homens.
Dissimula a seus olhos os perigos mortais que corre e também a
segurança que reconquistou. E. assim, ainda que não tenha
desejado, chegará u m dia em que descobrirá que, apesar de
tudo, apenas uma máscara dele é conhecida, e que é bom que
assim seja. Todo espírito profundo necessita uma máscara.
Mas, entretanto, em torno de todo espírito profundo se forma
constantemente uma máscara, graças à interpretação,
continuamente falsa, isto é, superficial, dada a todas suas
palavras e a todas manifestações de sua vida.
FRIEDRICH WILHELM NIETZSCHE
ALÉM DO BEM E DO MAL

Caso falar de si mesmo fosse uma tarefa fácil as pessoas não se embaraçariam tanto para responder a simples pergunta: “quem é você?”. Ora, muitos irão associar a própria identidade ao nome impresso pelos pais ou lugar onde nasceu, buscando um registro de si e suas referencias e raízes. Não irei destoar muito da maioria das pessoas, pois caso o fizesse correria o risco dos possíveis leitores não significarem isso muito bem.
Nome escolhido pelo pai, Ronaldo, sobrenome da mãe, Araujo – sem acento mesmo, como digitado na certidão de nascimento, e o sobrenome do pai, Santiago. Nascido em Salvador, morador da Cidade Baixa, 24 anos de idade. Se para as forças policiais e jurídicas essas informações já dizem muito, para mim não servem de muita coisa quando o assunto é uma apresentação, um conceito de si. Acredito que ouvindo um interlocutor pedindo para que me apresente, pensaria por segundos e responderia de uma forma que acredito ser a mais próxima de mim: depende. De muitas coisas, onde eu estou, com quem estou, que humor estou, no que penso, no que passo, no que bebo ou fumo, nas relações de poder que tal situação pudesse se caracterizar. Há uma crença de que somos um, essência, identidade. Identificamos-nos muito mais com aquele minúsculo ponto de constância que permite, através da nossa memória, perceber que somos os mesmos apesar de todo tempo que se passou. Mas como dar destaque a coisa tão ínfima e relegar um mundo repleto de mudanças, transformações, um devir que atravessa o tempo como uma metamorfose ambulante. Como pensar que aquele eu que acreditamos habitar no âmago de todo nosso ser nos representa melhor do que as infinitas máscaras que criamos e utilizamos para sustentar nossas relações sociais e a nós mesmos? Em algumas palavras gerais, posso dizer que sou múltiplo, diverso, avesso a tudo aquilo que tenta me reduzir a mim mesmo. Sou a cultura que me atravessa, constitui-me mesmo antes do meu nascimento. Sou minhas relações sociais, estão presentes em todo meu dia-a-dia. Meu desenvolvimento é o desenvolvimento do micro sistema que me rodeia. Os outros, principalmente os significativos, co-evoluem em mim numa dança onde não podemos determinar com precisão quem é um e quem é outro.

As (minhas) quatro fases da vida

Neste ponto, farei um percurso pela minha infância, onde as histórias aqui contadas provem de uma memória familiar, num esforço genealógico de encontrar e inventar meus momentos, costurando alguns destes pontos. Como dizer por que escolhi tais momentos e porque são importantes se todos eles convergiram para formatar quem sou? Sem eles talvez não fosse Eu, e mais que a soma de todos os momentos, sem eles não seria mais do que sou, não seria a minha totalidade. Os momentos aqui relatados estarão em forma de conto, com um narrador que se mistura com a primeira e a terceira pessoa, sendo aquele que conta e contado, típico discurso de quem lança um olhar para o próprio passado e parece não estar falando de si mesmo.

Aprendendo o segredo dos cadarços.

Lembro-me nas memórias de minha mãe do pequeno Ronaldo, em seu estágio cognitivo que, provavelmente, Jean Piaget chamaria de pré-operatório, aos cinco anos de idade. Ronaldo era franzino, um garoto que brincava de respirar fundo e demonstrar os seus bem delineados pares de costelas. Seus grandes olhos verdes fascinavam as tias, as amigas da mãe, as meninas da escolinha, as meninas da rua. Lembro de sua mãe amarrando-lhe os cadarços, todos os dias para ir à escola. Quando levado à escola, uma escolinha chamada Levy Miranda numa rua vizinha. Desesperava-se, agarrando-se a tudo que via. Era um sufoco todo dia. Mas quando chegava à porta da escola, largava a mão da mãe e rapidamente se despedia, não demonstrando qualquer resquício do terror vivido a segundos atrás. Sempre tentava, na hora do recreio, sentado sozinho num banco amarrar os sapatos. Vezes conseguia amarrar, vez não e quase sempre ia para casa com os cadarços desamarrados. Quando chegava em casa, sua mãe reclamava, demonstrando como seu irmão Ricardo, quatro anos mais velho, conseguia. Pronto, lá ia Ricardo demonstrar cheio de orgulhos a habilidade para o irmão. Um dia, Ronaldo recusou-se, ao chegar em casa com os cadarços desamarrados, que a mãe os amarrasse. Decidido, vendo o irmão que destramente amarrava o seu, lançou-se aos complicados nós e voltas de um laço de sapato. Por fim, conseguiu, sendo aplaudido por todos. A história de Ronaldo demonstra o que Vygotsky chamou em seus trabalhos de Zona de Desenvolvimento Proximal, que se trata de um coeficiente entre aquilo que a criança pode fazer sozinho e acompanhado por aqueles mais experientes.

A Zona de Desenvolvimento Proximal define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão, presentemente, em estado embrionário (Vygotsky. 1984).

A morte do Nome-do-Pai.

Quando ele possuía dez anos de experiência de vida e tendo ultrapassado diversas etapas do seu desenvolvimento, o pequeno Ronaldo passaria por um acontecimento familiar que marcaria de maneira muito forte o seu futuro desenvolvimento. Lembro-me que enquanto o seu pai ainda estava em casa, às condutas eram de certa maneira. Havia um medo na expectativa de confrontar as regras paternas por conta de desejos típicos daquela idade, como por exemplo, as constantes saídas com amigos que necessitava fazer. Certa vez o pequeno Ronaldo notou uma transformação nas relações intra-familiares, percebida como propriamente um Evento de Vida. Seu pai dormia agora fora de casa, deixando de estar presente por longos períodos. Tratava-se de fato que o pai envolvia-se com outra mulher, chegando a abandonar a família para viver tais aventuras. O pequeno Ronaldo não sentiu tanto esta falta, ao menos não conscientemente, pois a ausência do pai nas relações familiares o permitiu esgarçar muitas das regras parentais como: sair mais, freqüentar mais livremente o fliperama, chegar em casa em horários nunca imaginados. A mãe, que não demonstrava tanta rigidez com tais aspectos antes da saída do pai, pouco fez para que isso acontecesse, pois estava fortemente envolvida com o próprio sofrimento e angustias que atravessava. Com isso Ronaldo pode acessar estímulos importantes para o seu desenvolvimento que nunca seriam apresentados pelos seus genitores, aspectos que apenas boas amizades poderiam proporcionar e que foram fundamentais para o seu avanço e a construção da sua identidade. Podemos perceber como este Evento de Vida influenciou a vida de Ronaldo de forma não normativa e de como o pai, a partir de então, deixa de ser uma referencia simbólica significativa em grande etapa de sua vida.

Ao experimentar um evento de vida negativo, o indivíduo precisará utilizar seus recursos emocionais, sociais e intelectuais num grau que está relacionado a maior ou menor valorização a isso atribuída. Além da avaliação feita pelo indivíduo, a origem (interna ou externa), biológica, psicológica ou social, o grau de previsibilidade, a duração dos recursos de apoio, e o grau de controle sobre a situação são variáveis que influenciam o quão estressante pode ser o evento (Wathier, 2008).

Descobrindo o gostoso toque da vida.

Certa vez, deveria ter uns oito anos, fuçava o quarto dos pais, que agora era apenas da mãe, na busca por qualquer coisa que pudesse o interessar. Revirava quinquilharias das mais diversas. Olhou no guarda roupas e para a sua surpresa deparou-se com uma pilha de revistas com mulheres nuas nas suas capas. Tal descoberta poderia ser considerada um Evento de Vida, pois tal experiência marcaria toda sua vida. Descobriu partes do corpo humano, nunca vistas, ao menos não tão de perto e em tais ângulos. Começou a sentir contrações estranhas no próprio corpo, erupções que moviam muito mais o seu corpo do que poderia mover. Algo crescente havia surgido naquele interesse pelo pudor explícito em tais páginas desvairadas. Tocou seu corpo e descobriu zonas que lhe proporcionavam igual prazer, ou mais, que certas brincadeiras na rua ou beber água quando estava morrendo de sede. Após aquele dia aquelas revistas foram visitadas muitas vezes e o sonho de obter tais espécimes expostas naquelas folhas coloridas o acompanharam para à vida. Vemos que o pequeno Ronaldo, não tão pequeno assim, pode-se dizer, alcançava o que Sigmund Freud chamaria de fase genital, enquanto se enamorava por aquelas garotas estampadas, na procura de outros objetos de amor fora do círculo familiar.

A zona de erotização é o órgão sexual. Apresenta um objeto sexual e alguma convergência dos impulsos sexuais sobre esse objeto. Assinala o ponto culminante e o declínio do complexo de Édipo pela ameaça de castração. No caso do menino, a fase fálica se caracteriza por um interesse narcísico que ele tem pelo próprio pênis em contraposição à descoberta da ausência de pênis na menina (Garcia-Rosa, 1995).

Parado em nome da lei!

Já sabia bem como fazer. Sempre que chegava do colégio, subia e aguardava impacientemente. Tinha nove anos e todas as delícias da barraca de doces lhe apeteciam muito. Eles não eram caros, mesmo assim torrava o dinheiro que a mãe lhe dava para a hora do recreio. Só que sempre queria mais. Sentado em sua cama esperava a sua irmã mais velha, Carla, sair de casa. Quando ele ouvia as rápidas passadas escada abaixo, conferia se o portão batia, logo estava a adentrar no quarto da irmã. O destino era certo, lançava-se na cesta de roupas sujas da irmã em busca de possíveis trocados nos bolsos das calças. Para a sua alegria sempre encontrava uma moeda ou outra e as suas vermes agradeciam grandemente. Certa vez quando estava no meio da operação, foi surpreendido por um rasgar de porta bem atrás dele. A irmã voltara antes do previsto. Sendo pego naquela situação, encaldeirou-se purpuramente, a boca seca não disfarçava as mordidas que lançava aos lábios, como se estivesse munido por uma raiva de si mesmo. Não havia escapatória, foi pego com a “boca na botija”, estava morto de vergonha.

De um sentimento de autocontrole sem perda de auto-estima resulta um sentimento constante de boa vontade e orgulho; de um sentimento de perda do autocontrole e de supercontrole exterior resulta uma propensão duradoura para a dúvida e a vergonha. (Erikson, 1976)

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