Viajante!

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segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Na Noite


O frio veste o meu corpo nu largado na calçada enquanto a fina chuva cai. É inverno e o sopro dos ventos anunciam um mal agouro. As nuvens marcham como tropas pelo céu e nesta noite, com certeza, não haverá luar. A carcaça de corpos avulsos largados a noite amontoavam-se nos curtos espaços. Seus ossos gemiam mais do que suas barrigas famintas. Carros e gritos e a chuva e o ritmo pulsante da cinza cidade metropolitana ecoavam uma orquestra digna de Dante. O clarão de um lampejo revelava o raio x daqueles corpos destacados dos paredões cinzas, dos viadutos, dos bancos de praça, dos trapiches nas praias. Toda aquela gente sem dente, identidade e carente. Enquanto a sociedade dorme preocupada e contente, seu produto indigesto vaga sorrateiramente entre os muros da cidade.

A madrugada é pura adrenalina, horário que o corpo estala, o medo se instala e nas sombras da cidade a vida se arrasta miseravelmente, onde há lei do mais forte, lei do vigia, das trocas, das drogas e das orgias. Nas ruas a noite é o momento onde mais se movimentam, onde a existência parece mais solta, eletrizante e violenta. A sobrevivência se impõe diferente do dia, que mesmo sendo formada da mesma agonia, revela a tragédia indigesta do dejeto da periferia, sob holofote do sol a liberdade se torna agonia, a tropa de choque vigia, assim falam grandes homens por trás de suas telas, expondo a mazela humana de quem fracassa e tropeça. Pobres seres de mente severa.

Acordo enjoado, a boca completamente seca, visão embasada e rugindo uma tosse gosmenta. No rosto não trago alegria, mas as marcas do raiar do dia, da sobrevivência da noite, das sombras vividas. O mal-estar não é questão da existência, de onde vim, para onde vou. Nada disso tem importância. Este sim é fato concreto, sentido no corpo, engolido em palavras, real em sua provocação. Meu pai queria que eu fosse ajudante de pedreiro. Estou aqui empilhando pedras. Incendiário. No fogo vemos a nós mesmos, refletidos em cada estalo, consumindo todo o oxigênio no mesmo movimento e sincronia. Eu e o fogo, consumidos com grande euforia. A vida parece passar num segundo e tudo antes que era reflexão, agora é ausência de sentido, oco como o espaço da falta. Álcool nesse fogo e vejo um clarão que me revela e me mata e me mantem vivo nessa vida que parece passar num segundo. Era ilusão. As sombras? Não. Não. As sombras! Alguém me persegue nas sombras! Não. Não. Era só ilusão.

A fome me abala, a fome do corpo, a fome da alma, a fome de todas as fomes do mundo. Correndo consigo um trocado e trocando consigo um bocado. Minha mãe sempre disse para separar o feijão das pedras. Talvez o único rosto que eu me lembre. Tomo um sacode, coisa feia e violência, a política desce rasgando, apartando quem é de quem nunca foi, daqueles que não deveriam ser. E nesse ser ou não ser, A canela há de sofrer. A dor passa. A humilhação fica. A cicatriz é para toda vida. Pragas ao vento, cria-se um delírio, forma-se um lamento. Chuva... A cidade chora ao toque do sino da igreja. A praça fica deserta. Finalmente a noite.