O frio veste o meu corpo nu largado na calçada enquanto a
fina chuva cai. É inverno e o sopro dos ventos anunciam um mal agouro. As
nuvens marcham como tropas pelo céu e nesta noite, com certeza, não haverá
luar. A carcaça de corpos avulsos largados a noite amontoavam-se nos curtos
espaços. Seus ossos gemiam mais do que suas barrigas famintas. Carros e gritos
e a chuva e o ritmo pulsante da cinza cidade metropolitana ecoavam uma
orquestra digna de Dante. O clarão de um lampejo revelava o raio x daqueles
corpos destacados dos paredões cinzas, dos viadutos, dos bancos de praça, dos
trapiches nas praias. Toda aquela gente sem dente, identidade e carente.
Enquanto a sociedade dorme preocupada e contente, seu produto indigesto vaga
sorrateiramente entre os muros da cidade.
A madrugada é pura adrenalina, horário que o corpo estala, o
medo se instala e nas sombras da cidade a vida se arrasta miseravelmente, onde há
lei do mais forte, lei do vigia, das trocas, das drogas e das orgias. Nas ruas
a noite é o momento onde mais se movimentam, onde a existência parece mais
solta, eletrizante e violenta. A sobrevivência se impõe diferente do dia, que
mesmo sendo formada da mesma agonia, revela a tragédia indigesta do dejeto da
periferia, sob holofote do sol a liberdade se torna agonia, a tropa de choque
vigia, assim falam grandes homens por trás de suas telas, expondo a mazela
humana de quem fracassa e tropeça. Pobres seres de mente severa.
Acordo enjoado, a boca completamente seca, visão embasada e
rugindo uma tosse gosmenta. No rosto não trago alegria, mas as marcas do raiar
do dia, da sobrevivência da noite, das sombras vividas. O mal-estar não é
questão da existência, de onde vim, para onde vou. Nada disso tem importância. Este
sim é fato concreto, sentido no corpo, engolido em palavras, real em sua
provocação. Meu pai queria que eu fosse ajudante de pedreiro. Estou aqui empilhando pedras. Incendiário. No fogo vemos a nós mesmos, refletidos em cada
estalo, consumindo todo o oxigênio no mesmo movimento e sincronia. Eu e o fogo,
consumidos com grande euforia. A vida parece passar num segundo e tudo antes
que era reflexão, agora é ausência de sentido, oco como o espaço da falta.
Álcool nesse fogo e vejo um clarão que me revela e me mata e me mantem vivo
nessa vida que parece passar num segundo. Era ilusão. As sombras? Não. Não. As
sombras! Alguém me persegue nas sombras! Não. Não. Era só ilusão.
A fome me abala, a fome do corpo, a fome da alma, a fome de
todas as fomes do mundo. Correndo consigo um trocado e trocando consigo um
bocado. Minha mãe sempre disse para separar o feijão das pedras. Talvez o único
rosto que eu me lembre. Tomo um sacode, coisa feia e violência, a política
desce rasgando, apartando quem é de quem nunca foi, daqueles que não deveriam
ser. E nesse ser ou não ser, A canela há de sofrer. A dor passa. A humilhação fica.
A cicatriz é para toda vida. Pragas ao vento, cria-se um delírio, forma-se um
lamento. Chuva... A cidade chora ao toque do sino da igreja. A praça fica
deserta. Finalmente a noite.